domingo, 31 de dezembro de 2017

O Jardim Encantado



Sinto-me tão bem aqui, como me sentia na "terra" quando o tempo era lento e os olhos se enchiam de prazer. Lembro-me que reconhecia a chegada, pelos fetos à beira da estrada, pelo cheiro do eucalipto e da caruma que acendia as lareiras. Foi o tempo em que a vila para mim era uma aldeia, um agasalho de colo ao gosto da minha avó Hermínia. Agora, no "jardim" que me esconde a cidade, com os olhos a espraiarem-se na relva onde brincam crianças ou os namorados se abraçam, vou até ao lago. Meio a brincar, meio a sério, vou fazer o recenseamento dos animais que por ali o habitam.:  14 patos do Egito;  dois patos reais; muitas gaivotas pequenas e brancas; um cágado e, por último, o "triste só", um mini-pato que se recusa a crescer, que mergulha constantemente, aparecendo nos mais diversos sítios e  recusando, num jogo engraçado, a fotografia que o ameaça.

sábado, 18 de novembro de 2017

Os olhos do parque

No meu parque há uma vigilante que procura justificar o que recebe descobrindo, e censurando, possíveis infrações às regras estabelecidas.
Já nos cruzámos várias vezes e, agora que até nos cumprimentamos, aproveita para contar as dificuldades e perigos do posto de trabalho: são os cães, os donos dos cães , as crianças...  "aqueles ali, especialmente o de cinzento, uns mafiosos, já o avisei de que não pode subir às arvores, chamei a polícia e eles vão ver!... "
Aproximam-se dois rapazes, o de cinzento vem com um smartphone na mão estendida e diz:  "senhora, encontrei este telefone na relva, a quem o entrego?", a mulher olha-o com ar confuso e, por fim, diz : "...vem ali um polícia, alguém o chamou, aproveita para lho dares."
Conclusão já conhecida : A vida está sempre a surpreender-nos.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

O Jardim que o pensamento permite



Um dia, entre o voo e a queda, o nascer e morrer, pouso numa árvore de tronco calcinado e leio este poema de Maria Gabiela Llansoll

"A felicidade deve estar imanente no tempo. O tempo, em si mesmo, deve ser feliz. Que dia estranho, em que julguei sentir-me uma página do tempo. Fui a um dos meus jardins e encontrei a lua cheia, como uma pessoa que eu desejasse ver. Devo ousar mais: a lua era um ser que eu desejava ver. Este meu jardim não tem muro, nem casas à volta, está disposto a crescer à medida que eu o atravessar, uma, duas, três, centenas de vezes. É um lugar? É uma fonte que comunica com o espaço? É um texto a ler? É o jardim que o pensamento permite?"


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Melodias complexas


"Um átomo é mais parecido com uma melodia do que com uma mesa. Mas, como uma mesa é composta por átomos, não significará isso que a matéria não passa de uma melodia mais complexa? Seremos, como perguntava Símias de Tebas, algo mais do que melodias complexas?"


Martin Gardner, em "Nem todas as baleias voam" de Afonso Cruz

terça-feira, 29 de agosto de 2017

A pérola de Steinbeck

A música que agradeço ter recebido do Karim 

Não sabemos, muitas das vezes, porque recordamos ou esquecemos determinado livro. No conto de Steinbeck esqueci a narrativa, mas sabia que a estória era tão bela quanto dramática. Lembrava-me, no entanto, do autor chamar "música" aos sentimentos ou às emoções vividas em certos momentos pelos personagens: a música da família, dos filhos, da noite, do amor, da amizade...
Guardei esta dimensão da "música" como uma oferenda do narrador. Sinto-a, muitas vezes, sem nada saber de música.  A palavra substitui, com vantagem, muitas dissertações tão enfadonhas quanto inúteis sobre um estado de espírito, uma comunhão com qualquer coisa que não tem materialidade. Posso, com liberdade, falar da música dos astros, do verde, das águas... 

e posso perguntar se o SILÊNCIO tem música?
porque não sentir , então, "A MÚSICA DO SILÊNCIO", neste fim de tarde?


quinta-feira, 22 de junho de 2017

Sabes...?




Sabes porque me assusta a morte?
Porque deixaste pedaços de ti dispersos, nas gavetas, nos papéis, nas cartas guardadas, nos bonecos que decoram a casa, nos barros que trazes da infância, nos postais com letras várias e emoções antigas, nos santos bordados a renda com estórias por contar.

Como um puzzle a que faltam peças, todos são bocados incompletos de ti. Não pertencem aos que ficam, não lhes dizem da tua vida mais do que a imagem obscura do silêncio que transportam.

Não são também facilmente descartáveis, são, antes, um problema que te sobrevive, uma outra morte desconfortada e adiada até ao amanhecer de um outro dia que se quer limpo.



segunda-feira, 5 de junho de 2017

Sê inteiro






Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
...

Miguel Torga, Diário XIII




terça-feira, 30 de maio de 2017

O cravo




A representação Kitsch do 25 de Abril, numa gigantesca pomba bem intencionada.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Encontro com a Nadia

Esta pequenita mostrava-me, com orgulho, os desenhos feitos naquele caderno preto. Eram bolas e riscos. Garatujou rapidamente e com decisão o que afirmou ser o meu nome, numa demonstração clara de competência no domínio da escrita.

Pediu-me para fazer um desenho.
Tal como no conto do Principezinho, eu só sei fazer: uma cara de rapariga jovem e bonita, de preferência de frente, e uma boneca de grandes bochechas e sardenta.

Com voz segura e convencida disse-me: "Desenhas bem!" (nunca tal ouvira!) e demos de seguida nome às bonecas: uma seria eu em tempos idos de primavera, outra a Nadia acabadinha de crescer. 

domingo, 14 de maio de 2017

A Mercedes, a Anita e o Tobias


A Mercedes, a Anita



e o Tobias ...


recordando uma frase lida numa parede:



"Alice, emprestas-me o País das Maravilhas?"




               

domingo, 9 de abril de 2017

Primavera







O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.




Manuel de Barros "O livro sobre nada"




sábado, 25 de março de 2017

Carlos e a poesia



O Carlos, com quatro anos,  afirmava querer vir a ser "desenhista", "escrevista" ou mágico, este último depressa emendado para a nobre profissão de "duende".

Passados alguns anos, seis para ser exacta, confirma-se a veia desenhista, actualmente com incursões pela banda desenhada, e inicia-se na escrita com umas aventuras líricas de sabor poético. Vejamos:

No papel novinho em folha
Desenhei uma papoila
Subitamente sem hesitar
Saiu do papel a voar
Pousou na terra a cantar
Toda feliz a falar
Sem parar de sorrir

E assim, cruzando o desenhista com o escrevista, se cumpre a magia naquela papoila que voa.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Adeus! Adeus!


Devia morrer-se de outra maneira. Transformando-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir-se de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do grande "disfazer" : - Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às nove horas. Traje de passeio.
E então, solenemente, com passos de reter o tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mão quentes, ternura de calafrios "Adeus! Adeus!"

                                                                                                               José Gomes Ferreira

Chefchaouene


Éramos dois em Chefchaouene frente a uma nuvem rosa. Tão só quanto eu, a tua dança convocava o espírito dos céus. Haveria música? Eu tocava-a à noitinha, quando os sapos invadiam a terra e tinham a humidade dos verdes e dos castanhos encantados. A música era real? Era breve? Eram sons do encontro entre o silêncio e o meu corpo? Que música era essa que embalava os meus sentidos?

Fomos duas pessoas a saber beber chá de rosa e menta em Chefchaouene.
                                                                                                                                     


quarta-feira, 8 de março de 2017

Anita, a burra


Em Marrocos via-os pequenos, roliços, de pelo longo, como brinquedos em mãos adultas. Voltámos várias vezes àquela feira onde se vendiam e compravam após grandes discussões quanto ao seu preço, à qualidade e à resistência do animal. Tinham, normalmente, um ar doce e triste, como quem sabe que só lhes resta um futuro difícil de trabalhos pesados.

Em Alcochete, na reserva, encontrei o Ernesto, um burro português que comia flores e, por via dos seus excessos, fora separado das fêmeas. Não sei se o Ernesto foi até ao Alentejo...
...mas numa quinta de sobreiros, flores e pequenas lagoas, onde a terra é religião, uma burra escolheu dar à luz no dia 26 de Fevereiro uma cria que foi chamada de Anita.
Sabem porquê?

Em honra da minha amiga Ana que, ao fazer anos, nunca recebera uma tão merecida e bela prenda.

Há aniversários felizes e burros com sorte.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Os meus cantos




Escreve-se  nas folhas verdes de um cato, no tronco de um castanheiro, numa parede branca, ou num conjunto de figuras que se aninham num canto daquela sala.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Marvila


Ao dobrar uma curva, passamos por baixo de um arco antigo, feito de pedras e musgo, que se abre para um conjunto de ruas estreitas e cheias de cor. Talvez um antigo bairro operário, onde os sobreviventes de uma época e os abandonados de outra, se encontraram. Como aquela roupa estendida que atravessa a rua e liga as duas janelas.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Asas




Eu tinha umas asas brancas... quem não se lembra? Das asas ou do poema? De tudo!

a caminho do céu




domingo, 22 de janeiro de 2017

Stop the Time


Partiram os dois, com pouco intervalo de tempo.
Da minha mãe, guardo as suas mãos onde nasciam flores, pássaros, gentes e cores, figuras pintadas a óleo ou em porcelana, que povoam a casa e hão-de permanecer como realidades concretas. Estas mãos, versáteis,capazes de criar beleza e admiração, de lhe preservar a memória, estranhamente, não sabiam fazer a festa.
Lembro como, em pequena, desejava ter febre para sentir a sua mão gelada na testa. Ainda hoje faço o mesmo ao meu filho, na esperança de lhe dar prazer.
A minha rua perdeu brilho, tornou-se mais vulgar, sem a sua presença.

Do segundo, lembro o privilégio de o ter como amigo, da satisfação de umas palavras trocadas na entrada da sua casa, do seu humor mesmo quando a vida já não tinha graça.
O meu prédio está mais vazio. Não me apetece parar naquele patamar.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2017